Eleanor Madruga Luzes
Resumo
Este artigo procura demonstrar a evolução da espécie humana, dentro do paradigma
da tipologia junguiana. Considera que a sensação foi a primeira função vivida pela espécie,
seguida do pensamento. A autora entende que a arte relaciona-se com o sentimento, tal como
ciência ao pensamento. Descobertas passaram ao domínio comum da humanidade. Na
evolução da arte, processou-se uma mudança, ela passou a ser enfática a respeito do
feminino. Este como princípio que está ligado ao sopro da vida, enquanto masculino seria o
princípio, que separa e discrimina. Na literatura, o modo de observar os acontecimentos
modificou-se, a vida em si, seja nos aspectos de sobrevivência, ou no de qualidade de vida,
passou a ser foco central de obras literárias, cinematográficas. Neste instante, escritoras
latinas e autores com este acento internacionais passaram a uma notoriedade sem precedente
histórico, junto com isto, são vistos fatos que demonstram uma nova ordem sugerindo no
mundo.
Palavras-chave: gênero, Jung, arte.
THE FEMININE AS FEELING HERALD:
THE NEW ROLE IN THE WRLD
The purpose of this article is to discuss the evolution of mankind within the paradigma
of junguian typology. Consider that sensation was the first primary function known to the
huma species, later followed by the function of thought. The author understands art to be
interrelated with the function of sentimento, just as Science is with thought. Discoveries are
part ofcommon knowledge of humanity. In the evolution of art, change has taken place. Art
has begun to emphatically represent the feminine. The principle of the feminine is considered
the breath of life, while the masculine is that wich separates and discriminates. In literature,
the maner in wich eventsare observed has changed. Life is na of itself, be it about survival or
about the quality of life, has become the central focus of literary and cinematografic Works. At
this time, latin american writers, international authors, are recognized with umprecedent
notoriety. Additionally, in countless other áreas of life today, clear singns of beginning of a new
world structure are evidente
Key words: gender; Jung, art
Considerando a história da humanidade pela tipologia junguiana, C.J. Jung (1960), M.L.
von Franz (1971) a, (1999) b, percebemos que nos primórdios as civilizações sobreviveram
graças à função desenvolvida paulatinamente da sensação. Na nossa história as funções vem
se desenvolvendo em âmbito universal segundo necessidades de sobrevivência, o indivíduo
dentro de sua tribo precisava da função sensação para lidar com a natureza de forma direta,
lidar com o fluir com o se adaptar. A figura clássica que exprime isto é a do rastreador
indígena, que consegue ter tal visão que lhe possibilita saber que animal deixou que rastro e
quando. Uma audição que o faz perceber quantos animais num tropel se aproximam, e assim
por diante.
Uma história que me foi contada, ocorrida no Peru, ilustra o pleno domínio desta função: nas
proximidades de um rio, um grupo internacional de meteorologistas arrumava seu
acampamento, munido de vários equipamentos e passou um índio que os advertiu que uma
grande chuva se aproximava, o rio transbordaria e carregaria todo o material rio abaixo, e
ninguém levou a informação a sério. E os fatos deram-se tal como ele havia previsto. Um dos
cientistas teve a curiosidade de perguntar ao nativo, quando por lá passou dias após o
temporal, como este havia feito sua previsão. Ele explicou que havia notado que as cobras
tinham passado a fazer ninho bem acima na montanha, e então ele sabia que vinha chuva
intensa. Foi esta percepção deste tipo que garantiu a sobrevivência da espécie.
É claro que dentro das tribos, o pajé era alguém que tinha uma intuição bem
desenvolvida. Os sábios das tribos percebiam que lidavam com seu sentimento, pensavam
com o coração como um Pueblo explicou a C.G. Jung (1971): “Os índios Pueblos, porém,
porém, me diziam que os americanos eram loucos, porque pensavam com a cabeça, ao passo
que toda a pessoa de juízo sadio pensa com o coração” (p.360). No entanto o que estou
enfocando aqui é algo mais coletivo. Nesse âmbito a função intuição virá a se desenvolver
globalmente nos próximos séculos ou milênios. Pois para que possa o ser humano usar toda a
capacidade de seu cérebro, realizando o que hoje alguns paranormais conseguem, só com uma
ética muito bem assentada, visto que a evolução hierarquiza uma prioridade de sobrevivência
da espécie.
O que se dá na esfera do coletivo dominante. Em todos os tempos houve e haverá
pessoas de todos os tipos. Nações diferentes chegam a desenvolver tipologias diferentes, por
exemplo: o Brasil, um tipo misto intuição-sentimento extrovertido, a Suíça e a Inglaterra,
sensação introvertida, a Alemanha, pensamento extrovertido, a Itália, sentimento
extrovertido, a França e Portugal, sentimento introvertido. Os colonizadores deram filhos
extrovertidos de suas mesmas funções. Isto pode ser observado avaliando costumes, histórias,
arte, destas culturas. Portanto, não só indivíduos mas povos tenderam ao desenvolvimento
das diferentes funções psíquicas.
Porém o que estou tratando aqui diz respeito a um continuum de desenvolvimento
que se estende e aperfeiçoa por toda a parte, e traça um fio com aperfeiçoamento de funções,
por necessidade de sobrevivência. Assim é que por milhares de anos a sensação bem eficiente
garantiu que o homem sobrevivesse e em grande número, e aí a própria sobrevivência ficou
abalada, e então surgiu a necessidade de se desenvolver o pensamento. Passou a
racionalidade a ampliar os meios de produção criando e organizando cidades com populações
cada vez maiores, as necessidades se sofisticaram e a ciência e a tecnologia desenvolveram-se.
Ocorreu um pico da razão na Revolução Industrial, pode se dizer que o pleno
desenvolvimento desta função acentuou-se nos últimos dois séculos. Chegamos a equação
sobre energia: E = mc2, que segundo U. Maluf (1997):
“A partir do lado esquerdo, o mistério da criação – energia se
metamorfoseando na matéria; energia como a outra face da matéria;
A partir do lado direito, a hecatombe do artefato nuclear – matéria se
metamorfoseando em energia; matéria como a outra face da energia; a cultura do
aniquilamento total. Companheira da humanidade desde Hiroshima” (p.17).
Corrobora esta afirmação C. G. Jung (1974) Quando OPPENHEIMER viu o primeiro teste
da bomba atômica, ocorreram-lhe as palavras do BHAGAVADGITA: “…mais ofuscante do que
mil sóis” (p.190). Portanto além de uma equação, havia uma escolha, e a sociedade dicidiu
com o pensamento . Só que acabou ocorrendo uma inflação. Uso este termo pois a função
pensamento perdeu sua bússola de utilidade, ela ficou uma função autônoma, perdeu sua
qualidade de produzir de modo lógico como lhe seria próprio. Exemplo disso: temos hoje um
mundo com um arsenal nuclear que dá para destruir no mínimo 100 vezes o planeta, uma não
era razoável, mas cem é irracional. A própria distribuição de renda de tão perversa que
começa a ameaçar a vida dos que a perpetuam, no entanto nem por inteligência mudam de
agir. Legislações passaram a não ter senso, e somam-se às fartas regras, numa ambundante
ineficácia. Como dizia Lao-Tzu (data desconhecida, apud R. Wilhelm (1995):
“…Quanto mais instrumentos afiados o homem tiver,
mais a família e o Estado irão à ruina.
Quanto mais o povo cultivar a arte e a esperteza,
Mais presságios nefastos surgirão.
Quanto mais leis e decretos de publicarem,
Mais ladrões e assaltantes haverá.
É por isso que um sábio diz:
Se não fizermos nada,
o povo evoluirá por si mesmo.
Se amarmos a quietude,
o povo se organizará por si mesmo,
Se não empreendermos nada,
o povo prosperará por si mesmo.
Se não tivermos cobiça,
o povo por si mesmo chegará à simplicidade”. (p. 96)
Com o primado do pensamento, dirigido para a morte, pois vemos uma economia em
que a maior parte dos países reservam os mais polpudos orçamentos comprometidos com
armamentos que eufemisticamente chamam de defesa. Quando de fato esta palavra se
aplicaria à educação, saúde, prosperidade do povo, qualidade de vida, mas isto implicaria
valores e não em leis e regras de uma sociedade que permanece feudal com uma distribuição
de renda arbitrária, não ética. Esta estrutura realizou em números oficiais 2000 testes
nucleares, criou uma série de condições que geraram desequilíbrios ecológicos, e da condição
humana então, nem se fala.
Chegamos então num ponto onde a humanidade por questão de sobrevivência ativa a
função de valor, que é a função do sentimento, ou ela soçobrará. E é isto que já está
acontecendo. Ao longo desta exposição procurarei mostrar os inúmeros sinais que já sugerem
deste novo estado de consciência coletiva.
Além de me valer do material da referência bibliográfica abaixo, utilizei informes de
jornais, entrevistas, que me possibilitaram ir traçando o retrato psicológico deste momento.
Estarei falando aqui do feminino como princípio. Nas palavras de C.G. Jung (1998)
“feminino, símbolo do corpo que contém anima, o sopro e a água da vida” (p.131) adiante no
mesmo parágrafo o autor completa: “um elemento masculino que corta, divide, discrimina; é
uma simbolização do princípio masculinos do logos” (p.131).
Ainda C.G.Jung (1984): “Eros é entrelaçamento e Logos, conhecimento diferenciador; a
clara luz. Eros é relacionamento; Logos é discriminação e desapego” (p.55). Portanto mesmo
que cite mulheres, em várias passagens, serão elas que por natureza explicitaram este
princípio. Contudo, os fatos que enunciarei mostraram que tanto homens como mulheres,
munidos deste modo de expressar; estão fazendo a função sentimento ser parida.
Sempre que uma nova função vem à tona, surgem seus primeiros arautos, que a
anunciam, muito antes de ela entrar nas cercanias da consciência coletiva. No caso do
sentimento, vão os artistas, e os indivíduos voltados para as grandes obras sociais que realizam
o que depois passa ao senso comum. Inscrevem-se aqui as ONGs que são regidas por um
princípio de valor a respeito de algo, onde impera uma dinâmica de fraternidade cujo tom
básico é o da harmonização.
Ao observarmos as recomendações dos projetos da Agenda 21 em P. Krant (1999)
concluímos que ela foi um importante resultado gerado na ECO-92, e vem criando ações na
direção do desenvolvimento sustentável, sendo importante frisar que mais de dois terços das
declarações da Agenda 21 que foram adotadas pelos governos nacionais não podem ser
executadas sem a cooperação e o compromisso dos governos locais.
Um magnífico exemplo da implantação destes projetos foi com a comunidade de
coletores de lixo no Cairo, onde a partir do desenvolvimento ecológico-econômico das
sociedades envolvidas chegaram a níveis impressionantes de mudanças na qualidade de vida
em todos os sentidos do físico ao educacional. Estes trabalhos que estão pulverizados pelo
mundo afora, onde ouve-se as comunidades e tenta-se chegar as soluções que nasçam da
própria sociedade, que tenham o seu rosto, a sua vontade, e possibilidade de execução, e
façam o sentimento de valor de cada indivíduo se desenvolver. Estes movimentos que estão
acontecendo pelo planeta são um determinante da função sentimento em seu desabrochar
intenso e definitivo. As pessoas tocadas por estes processos não mais aceitam as velhas
normas de gestão arcaica, a ordem do pensamento imposto sem considerar a quem se
destina.
A ordem racional dos senhores do mundo determinando o melhor para todos começa
a estertorar. Em cantinhos dos países vão se coalescendo numa nova unidade de vida que não
tem como não dar as mãos no meio da terra executando a nova ciranda do mundo, é só
questão de tempo, e nem muito tempo. Estes movimentos são um determinante da função
sentimento acontecendo. Os movimentos ecológicos, não permitindo a extinção de espécies, a
consciência que interdita testes nucleares bem como a circulação de lixo atômico pelos
oceanos. Todos os esforços para criar o desarmamento mundial.
Mais e mais ONGs vêm falando e procurando pressionar governos a respeito das
dívidas externas dos tratados injustos para os países em desenvolvimento, e as pressões não
pararão, pois o mundo com sentimento chama por fraternidade e bem-estar.
Nos anos 70 aos gritos das mães e avós da Praça de Maio, vieram se juntar outros
gritos de outras mulheres que tiveram seus colos rasgados pela ausência bruta, roupas rotas
pelo luto que jamais termina do filho morto, no Oriente. O Cronos, rei dos armamentos, deu a
volta ao mundo ceifando jovens, e chamando de loucas as vozes que se recusavam a calar de
denunciar dor, e de se organizar, trabalhar e pedir que parassem a matança.
No dia 17 de junho de 1998, um marco na história da humanidade ocorre em Roma,
onde representantes de 162 países reunidos por mais de um mês aprovaram por 120 votos o
estatuto da nova corte, o Tribunal Internacional Penal para julgar crimes de guerra praticados
por cidadãos de todas as nacionalidades. Este tribunal terá a função de deter e punir
indivíduos responsáveis por genocídios, crimes de guerra e crimes contra a humanidade. Ele
marca o fim da era onde ditadores genocidas sucediam-se impunimente em seus governos.
Vira assim a página da selvageria, para uma nova civilização. Mesmo apresentada como lei, a
gestação foi longa, pois a ideia vem a anos tentando se materializar, através dos esforços de
muitos que ficarão anônimos mas não menos queridos por tal luta de anos, deixando garantida
às gerações futuras, já nesta década, uma maior segurança de vida..
Finalmente começa a se esboçar os traços de uma sociedade que permite a
convivência dos opostos nos países sem que necessariamente eles se aniquilem.
Novamente são ONGs, fazendo como tecelãs os trabalhos, que levaram aos processos
contra as indústrias de armas. No mês de junho de 2000 sucederam-se processos ganhos por
entidades civis contra a indústria armamentista. Hoje o estado de Nova York após uma
manifestação encabeçada por mães de vítimas em passeatas por 70 cidades pelo país está
processando 26 indústrias de armas nos EUA. Desde 1999, 50 prefeituras estudam processar a
indústria de armas por prejuízos aos cofres públicos, principalmente devido a despesas
médicas. Segue assim um longo trabalho que depois de anos de insucesso, começa a ganhar
causas, que mudarão o eixo de uma sociedade voltada para a morte.
Ainda neste ano começa a mais ostensiva luta contra os paraíso fiscais onde lavagem
de dinheiro de tráfico de arma, de drogas, e corrupção política tem ainda hoje permissão para
se esconder.
E assim a evolução vai ocorrendo, ainda com muito pouco destaque na mídia,
comprometida com a velha ordem, e na tentativa de manter os indivíduos deprimidos e
paralisados. Na verdade, há muito para se comemorar e muitas frentes com que cada cidadão
pode se comprometer, pois o novo tempo, o tempo de valor envolve o toque do coração de
cada um. O tempo de zelar pelo próximo chegou, a ternura põe sua face à mostra. Sua
coragem é a que vem da certeza do serviço amoroso, lembrando o arquétipo de Maria. C. G.
Jung (1985): “Depois de o magistério eclesiástico ter hesitado por longo tempo, e de já haver
passado quase um século de declaração da Conceptio Immaculata como verdade revelada, foi
somente então em 1950 que o papa achou ser oportuno declarar a Assumptio como verdade
revelada, ao ver-se como que impelido por uma corrente popular” (p.179). Era o símbolo mais
alto do cristianismo que encarnava o arauto surgindo em meio a uma enraizada igreja
patriarcal. Era o quaterno, resolvendo a quadratura do círculo do mundo. C. G. Jung (1993): “O
próprio Deus não pode prosperar numa humanidade que sofre de fome espiritual. A esta fome
reage a psique da mulher, pois é função do Euros unir o que o Logos separa. A mulher de hoje
está diante de uma enorme tarefa cultural que significa o começo da nova era” (p.128).
Em 1945 nas descobertas da Biblioteca de Nag-Hammadi no Alto Egito, dos Evangelhos
escritos em copta saídico, atribuídos aos discípulos que conheceram Jesus, dentre eles etá o
Evangelho de Maria (Míriam de Mágdala) traduzido para o francês por Jean-Yves Leloup, 1997.
Ela que foi a primeira a ver o mestre ressuscitado. São raros os escritos cristãos dos primeiros
séculos que não fazem menção a esta figura. Nesta passagem onde os discípulos em aflição,
ante a incumbência de espalhar a Boa Nova, perseguidos, tinham medo do que lhes poderia
ocorrer. Na página 9 do Evangelho, versículo de 8 a 20 há um demonstrativo claro de que o
amor encoraja, e inspira ao enfretamento da velha ordem, convida mesmo a humanização.
Esta passagem revela Maria como arauto do sentimento, e a sincronicidade faz com que este
texto seja mundialmente divulgado no apagar das luzes do século XX. J. Y. Leloup (1997).
8 “Como ir até os pagões e anunciar
9 o Evangelho do Reino do Filho do Homem?
10 Eles não o pouparam,
11 como eles nos poupariam?”
12 Então, Maria se levantou,
13 ela os beijou a todos e disse a seus irmãos:
14 “Não fiqueis pesarosos e indecisos,
15 porque sua graça vos acompanhará e vos protegerá:
16 em vez disso louvemos Sua grandeza,
17 porque ele nos preparou.
18 Ele nos convida a ser plenamente Humanos (Anthropos).”
19 Com estas palavras, Maria voltou seus corações para o Bem;
20 As palavras do Mestre tornaram-se claras para eles. (p.29)
A figura do arquétipo do feminino liga-se ao cuidar, nutrir, tratar. É esta força da
natureza, visto que é isto que este aspecto do inconsciente coletivo representa na estrutura
humana. Assim tal força vem trazendo uma nova visão de cuidado com a planta, como se
observa através dos movimentos ecológicos. Dentro das figuras cristãs este aspecto do
feminino é também observado por J. Y. Leloup (1999): “ Maria Madalena é ainda um arquétipo
do feminino na sua capacidade de interceder pelos doentes, pelos moribundos” (p.143).
Mas onde a função sentimento se torna pungente como um fio condutor, inspirador, é
quando olhamos para a arte, especialmente a que está surgindo na América Latina. Não só os
salões de dança que injetam tangos e salsas e merengues no sangue precisam fazer o coração
fluir, mas os escritores estão trazendo algo novo ao mundo, pleno de sentimento e mística e
erotismo. Cheio das agudas visões e olhares como um humor de se saber rir da vida. O riso que
andou soterrado por séculos, precisa vir para as caras e almas. O mundo novo muito que
precisa dele, e a literatura latina está trazendo este filho ao mundo.
Podemos usar vários marcos, mas o sentimento não liga para estas ordens. Vou
descrever o que subjetivamente percebi quando vi Como Água para Chocolate, o livro da
mexicana, Laura esquivel de 1989, onde estavam literalmente e simbolicamente todos os
ingredientes de que se faz um arauto do sentimento. Existe uma passagem neste livro que fala
do encontro entre esta situação extrema do pensamento, e o sentido de nascer desta nova
função. A passagem é a seguinte: L. Esquivel (1989).
“—Como vê, todos nós temos em nosso interior os elementos necessários para produzir
fósforo. E além disso deixe-me dizer-lhe algo que nunca confiei a ninguém. Minha avó tinha
uma teoria muito interessante: dizia que ainda que nasçamos com uma caixa de fósforos em
nosso interior, não podemos ascendê-los sozinhos porque necessitamos, como no experimento,
de oxigênio e da ajuda de uma vela. Só que neste caso o oxigênio tem de provir, por exemplo,
do alento da pessoa amada. A vela pode ser qualquer tipo de alimento, música, carícia, palavra
ou som que faça disparar o detonador e assim acender um dos fósforos. Por um momento nos
sentimos deslumbrados por uma intensa emoção. Se produzirá em nosso interior um agradável
calor que irá desaparecendo pouco a pouco conforme passe o tempo, até que venha uma nova
explosão a reavivá-lo. Cada pessoa tem de descobrir quais são os seus detonadores para poder
viver, pois a combustão que se produz ao ascender-se um deles é o que nutre de energia a
alma. Em outras palavras, está combustão é seu alimento. Se uma pessoa não descobre a
tempo quais os seus detonadores, a caixa de fósforos se umedece e já não podemos acender
um só fósforo. Se isso chegar a acontecer, a alma foge de nosso corpo, caminha errante pelas
trevas mais profundas tentando em vão encontrar alimento por si mesma, ignorando que só o
corpo que deixou inerme, cheio de frio, é o único que podia lhe dar isso.” (p.94 a 95)
Esta é uma descrição metafórica e didática do corpo humanidade hoje, que não está
conseguindo se encontrar com o seu outro, com a harmonia das relações amorosas, com a
solidariedade, a fraternidade, encontrar-se com todo o outro do mundo que passe a importar
a ponto que todos nós venhamos a ver o sentimento fazer toda a combustão de vida em todos
nós. Este texto é muito significativo deste momento de transição, e explica direitinho o que se
deve buscar. O que vivenciamos quando mergulhados no pensamento, é deixarmos nossos
fósforos úmidos e desconectados. De nada mais vale o conhecimento das matérias se não
conhecermos com o outro fazer acontecer em nós, a transformação.
Mas não para aí, o eros querendo acordar sentimentos. Denise Stoklos, brasileira, vai
rodando pelo mundo, falando em tantos idiomas, fazendo o caminho contrário de Babel, como
é próprio do sentimento, unir o que o logos separa. Fazendo história, teatro e poesia, parindo
conspiratoriamente ( como gosta de dizer) consciências, como aparece neste poema: Frank D.
Stoklos (1992).
“Hoje vi um homem desvitalizado. É como o imenso alcance de recursos dos povos ricos
e quase nenhum de interesse em vida. O que pode interessar ao homem? Talvez o desafio com
a morte, talvez a possibilidade de desmanchar o tédio de não poder ser o que não transgrediu.
Os disfarces. E o homem ouvia os gemidos do aeroporto. Que lhe invalidavam o passaporte e o
ticket. Afinal nome não correspondia a dor. O bilhete não conduzia a nada mais distante que
sua própria ausência de si próprio. Propriamente de quem ele havia se despedido, afinal, antes
de tomar o taxi louvadamente encontrado no meio da chuva morna daquela tarde solitária e
vazia. Fechou o livro de bolso comprado na banca do aeroporto, livro de viagem rápida de
executivo. Livro de literatura barata descarada que não chegou a conhecer Clarice Lispector. A
paixão tercearia GH. Chegaria portanto a âncora do marujo de primeira estrofe, de última
chance, de meios caminhos. O solto alto arco da volta e meia casualidade. O apito longe e
grave. O aperto largo e grave. O porto lento e grave. O parto denso e grave, grave. A poesia da
Silvia. A Plath despudorada e fria no gás que a une a presidiários chacinados na cozinha. O óleo
fervendo, a pipoca de Dante no inferno diário desse estopim de vida escapada, esvaziada.
Botijão gordo pesado é o convite para Plath sedutor de presos? A dor, o negror. Atrás da
cortina a janela abre. E muitas vezes nada mais que respirar esta. O aborrecido da memória
computadorizada em megabites é seu limite. A mídia do exercício entre comando e ação
desaparece. Pra quem se dedica em assistir processos livres a falta se faz. A criança já não. Dir-
se-ia em afeição pela linguagem falada escrita, que puxa o penúltimo assunto no comentário, e
com isso cria um estruturalismo de discurso rápido. Dizer que sim ao antepenúltimo assunto e
abordá-lo elegantemente. Os esquecidos são os bons que serão todos, a separação é inútil
como querer a divisão dos quatro em dois. A atmosfera de túmulo enfim sós. Religar o traço da
solidão com a desordem do tempo. Cumprimentar o homem.” (p.25)
Esta mulher vem sendo editada e vista em 23 países em 3 continentes, isto demonstra
a fome, a falta desse modo de desnudar humanizando. Mesmo aqueles profundamente
pasteurizados pela inconsciência do pensamento inflacionado que é ruminante, como se fosse
um mantra às avessas, e não faz ninguém encontrar o seu centro, mas antes esquecer de sua
própria existência revestida de um mínimo de dignidade cósmica a que qualquer ser humano
tem direito. É preciso acordar o olho que não vê a si mesmo, pois a salvação deste tempo é
individual, daí que há de se falar do indivíduo até que ele dê conta que existe separado do
carro, da televisão e do computador, uma existência isolada, e unida a uma humanidade que
lhe seja familiar.
Mas, além, há Isabel Allende, peruana, que fala na sua Casa dos Espíritos das feridas
pelas dores opressivas, das descomunicações familiares, dos vãos de silêncio deixados
tentando a asfixia do amor. Aquele vivente que sempre quer transformar e falar os cantares da
harmonia. Conta ainda no seu De Amor e Sombra, de uma terra onde a brutalidade, a tortura
impetrada pelos governantes gananciosos não matará jamais o amor e a fraternidade que
fazem estropiados subirem montanhas. Ambas as obras se internacionalizaram nas telas do
cinema. Lá estão expostas as feridas do mundo de ditadores, mas que não conseguem
estancar a água que corre nas relações com todos os mundos, a ternura de tantos para tantos.
Há sempre como se abarcar a vida no coração que ensina o mundo a “latir” num compasso
exótico onde os mortos estão conosco, pois afinal podemos carregar a todas as gentes, que
isso não nos faz superpovoados, mas mais humanos.
A Lygia Fagundes Teles, brasileira, que se define como a escritora da geração do livro
da marmelada. Este livro era onde as mulheres no meio de suas tardes só escreviam receitas,
contabilidades, sonhos, e poemas, e reflexões, e desta experiência de assim mesclar as coisas
do cotidiano com o belo, surgiu uma geração de escritoras, e com este jeito de dizer, e uma
arguta observação da vida trouxeram contos para contar, histórias para fazer conhecer o
coração humano, e agora podem ensinar ao mundo como se ajeitar com esta nova função que
cabe em qualquer papel, mas que precisa de muito tempo para se sentar atrás da porta de si.
Outra mulher brasileira que anda enlouquecendo como “Dona Doida” com seu mundo
com a visão particular é Adélia Prado, aqueceu o coração da amiga Europa, como se fosse
cataplasma, novamente a força da função religiosa é coisa de se viver no cotidiano com em: A.
Prado (1979).
Duas Maneiras
De dentro da geometria
Deus me olha e me causa terror.
Faz descer sobre mim o incubo hemiplégico.
Eu chamo por minha mãe,
me escondo atrás da porta,
onde meu pai pendura sua camisa suja,
bebo água doce e falo as palavras das rezas
Mas há outro modo:
Se vejo que Ele me estreita,
Penso em marca de cigarros,
Penso num homem saindo de madrugada para adorar o Santíssimo
Penso em fumo de rolo, em apito, em mulher de roça
Com balaio cheio de pequi, fruta feita de cheiro e amarelo.
Quando Ele dá fé, já estou no colo d’Ele,
Pego Sua barba branca,
Ele joga pra mim a bola do mundo,
Eu jogo pra Ele. (p.79)
Se nos perguntarmos o que será que fez plateias do outro lado do Atlântico se
fascinarem tanto, a resposta é que os textos se estenderam como um bordado que traz nas
suas linhas a união da religiosidade, função que liga o ego com o si mesmo, fundamental nos
momentos de passagem, mas liga ainda o sentimento, a experiência viva, a sensorialidade das
coisas que ao tocá-las tira-lhes da banalidade anterior, e as leva a um novo estado da matéria,
sendo alquimia pura disfarçada em brincadeira de esconde-esconde.
Esse jeito de juntar tudo, os torturadores do passado, o fumo de rolo, e os cheiros, a
aguda visão da solidão dos fantasmas de todos os tipos, faz deste mundo um caleidoscópio de
imagens e sensações que não param de sair. Em contrapartida com a ordem previsível do
pensamento que vem se esclerosando sem cor, conspirando para o tédio, o alheamento, a
indiferença. Esta maneira de passar pela dor alheia como se não fossemos da mesma espécie.
Isto é deixar a vida sem valor. É preciso conectarmos a vida ao cosmos, e ao que está do lado
do que for do mundo, e só deste modo conhecendo-nos como unidade, salvar-nos-emos.
Este poema foi escrito especialmente para a Campanha da Ação da Cidadania Contra a Miséria
e Pela Vida / Betinho/ 93. Poema da brasileira Elisa Lucinda que também está pelo mundo
contando estórias. E. Lucinda (1996):
Apetite sem esperança
Mãe eu to morrendo de fome
Eu dizia eu gritava eu mugia
Minha vó zangada respondia
Você não está morrendo e nem tem fome
Você tem é apetite
Você sabe que vai comer, aonde comer, o que vai comer.
Fome não! A fome, minha neta,
A fome, meu irmão,
A fome, minha criança,
É um apetite sem esperança.
Quando há certeza de cereais, toalhas americanas,
Guardanapos e alegrias de coca-colândia
Não há fome de verdade.
Minha vó já dizia pra mim um futuro de Brasil.
Minha vó nem viu nascer edifício no lugar do pão
No lugar do trigo
Nem viu criança com infância de semáforo
Vendendo mariola barata, criança que mata
Porque seu quintal ta sempre no vermelho
Criança cujo ralado no joelho
Dói menos do que a morar, não existir, não contar
Com a fome tenaz
Não há tenaz na escola
Há só a cola de se cheirar a dor doída
De um monstro estômago a roncar
Um animal doido dentro do corpo a uivar
Todo dia, sem boa vista, sem Quinta zoológica onde morar
Com a fome das crianças brasileiras
Forra-se a mesa, arma-se banquete
Dos que sempre tiverem apenas apetite.
A faminta criança foi apenas o álibi, o cardápio, o convite.
Desmamada ele cresce procurando o peito da pátria amada
Uma banana, uma manga, uma feijoada
E mãe pátria diz nada
Tem ela apenas horror, o descolar, a calçada
Um ódio a todos os tênis de todos os meninos nutridos
Um ódio a mochilas, saudáveis barrigas
Um contínuo furor de assaltar os relógios
Um deter o tempo que é o seu verdadeiro balão
Um cai-cai balão que só cai à mão-armada
A fome gera a cilada de uma pátria de não irmãos
A gente podia ter gripe, asma, catapora, bronquite
A gente podia ter apetite mas fome não
Minha vó bem que dizia sem errança:
Fome é um apetitie sem esperança. (p. 172 a 173)
Nossa fome no mundo, é que o parto da função sentimento logo se dê, pois neste
nascimento está compreendido que todas as vidas terão o preciso, o fundamental para viver
com dignidade, num planeta onde crianças terão só apetite, mas fome nunca.
O feminino arauto de um novo tempo fazendo parir um novo homem. Para quem não
basta cessarem as matanças, e que se cuide do meio ambiente, é preciso mais. Fazer com que
cada ser venha ao mundo cuidado e ouvido desde sua concepção. Olhando para está direção,
D. B. Chamberlain (1990) relata que nos anos 60 começaram os trabalhos os quais culminaram
com a criação da International Society for Study of Prenatal Psychology (ISPP) em 1971 em
Viena. Hoje mais órgãos internacionais existem, com inúmeras sedes regionais em diversos
países, que distribuem conhecimento, atualmente aplicáveis em projetos de saúde pública em
vários países, inclusive o Brasil.
Assim Míriam de Mágdala, a primeira testemunha, arauto reconhecido da grande
aliança, pois era mesmo preciso de um coração para atestar o Inefável, mas que
canonicamente não é evangelista. Depois vem vindo as aparições de Virgens por todos os
tempos seguintes, fruto do feminino reprimido, como nos fala Leloup (1999), avisando que
desgraças podem ocorrer se o respeito pela vida continuar a ser efeito retórica, ao invés de
prática.
Quando me refiro ao feminino, não estou falando do gênero humano, mas do princípio
do eros que faz estas obras acontecerem. No caso da Psicologia Perinatal, figuras como
Thomas Verny, David Chamberlain, Frederick Leboyer, Michel Odent. No Tribunal
Internacional, muitos outros nomes. E assim nas inúmeras ONGs, Na literatura o Realismo
fantástico tem muitos luminares que não foram aqui citados. Uma multidão de homens e
mulheres executam o lado feminino, do cuidar, do observar, refletir, o da resistência pacífica
contra a força bruta. Isto que na mulher tende a ser o comportamento espontâneo, e que
graças a uma evolução de consciência cósmica, mais e mais homens tem uma percepção e
ação do mundo reflexiva e cuidadosa como São Francisco de Assis, patrono da ecologia. Aquilo
que ele fez há 800 anos, muitos homens puderam aderir agora. Pois é chegado o momento de
todos viverem esta maturidade da consciência, que não pode mais permanecer lateralizada.
As súplicas, os pedidos em vozes veladas a favor da sobrevivência da humanidade
estão fazendo acontecer uma pedagogia que ensina nas escolas a compreensão e a não-
violência, que começa a fazer empresários entenderem que “empregado feliz é mais
lucrativo”. E assim o cotidiano vai se humanizando. Os sussurros acalentam uma nova ordem
de dignidade humana. A ética, trôpega, quase recém-nata no mundo político começa a fazer
suas aparições. Estamos testemunhando a função do sentimento nascendo na aurora de uma
nova humanidade, e os arautos continuam a anunciar que podemos crer que ainda mais está
por vir.
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